Ganda Ordinarice

Desabafo bem intencionado e imagético sobre o Salão Erótico de Lisboa.

domingo, setembro 09, 2007

Contos avulsos - V



SILVA STORY

Imaginei uma caneca de cerveja a deslizar no balcão de madeira. Nada disso aconteceu. Um barulho de fundo martelava-me os neurónios, que sentia a dissolverem-se no fumo das frustrações sugadas no filtro ranhoso dos cigarros. Eu mesmo tacteava docilmente um SG, os dedos em V de vitória transversal, adormecidos por um comodismo melancólico e cinzento.
Não era eu no espelho, mas alguém que tivera oportunidade de conhecer em tempos idos. Um rosto vagamente familiar, com rugas agrárias a sulcar uma derme disfarçada de face. O fumo continuava a subir até ao tecto e a impregnar-me os nervos de um sentido de decadência meramente instintivo.
As omoplatas estremeceram. O meu tronco projectou-se na direcção do balcão. O peito tocou ao de leve na caneca e a espuma já adormecida mergulhou de boa vontade e desenhou o mapa de um país com cheiro a cerveja. O empregado automaticamente limpou esse estranho e novo país do mapa de madeira quase lisa, com menos rugas do que eu. Sorriu-me.
— Prontinho. Assim está melhor.
Mal sabia ele que apagara inconscientemente um país em que eu gostaria de viver e onde tudo era ainda possível. Uma voz contornou o espaço e penetrou directamente no meu cérebro.
Era o Ludovico, que acabara de se sentar ao balcão, fazendo sinal para que lhe trouxessem uma caneca de cerveja. Jovial, expansivo, sempre às palmadas nas omoplatas dos pobres diabos como eu.
Conheci o Ludovico no futebol. Em Alvalade, mais concretamente. Chovia a espaços e o jogo ia passando num écran de relva, nos intervalos da pluviosidade, dos insultos ao árbitro e do voo das gaivotas em terra, entretidas em raides perdidos com os Airbus da TAP, a ameaçar aterragens em plena grande área do adversário, luzinhas a piscar seduções nunca concretizadas. Tinha plena consciência de não estar no santuário de Fátima, mas aqueles milhares de chapéus-de-chuva a abrir e fechar lembravam-me sem remissão um ritual sagrado de desfloramento de cogumelos negros com espasmos sexuais.
— Muito prazer. Ludovico Ferreira.
Estendeu-me a mão sem medo nenhum e o sorriso estava fora-de-jogo no contexto meteorológico do dia. Se eu fosse uma máquina de fotografar, decerto seria luz a mais para o meu rolo.Foi assim que o fotografei mentalmente.Ao intervalo, fomos tomar uma"bica" no meio de um magote de fanáticos, entretidos a caluniar o técnico do Sporting. Um problema qualquer de pontas-de-lança, centrais e progressão atacante, ao que parece. Recordo-me vagamente que a solução estava no último terço do terreno. Não percebi porquê.
Soube-me bem o café, apesar de suspeitar do grau de limpeza da chávena e de ter sofrido várias cargas de ombro ilegalíssimas, que o árbitro não puniu com o cartão amarelo por se encontrar no balneário. Exibi quinze minutos de uma apatia programada involuntariamente. Afinal, sempre estava a sair pela primeira vez com o actual namorado da minha ex-mulher. São coisas que deixam um sujeito abalado, mesmo que não se queira. Depois, que raio de ideia travar conhecimento num jogo de futebol.Foi o Ludovico que me descobriu no meio da confusão, já íamos com vinte e cinco minutos da primeira parte.Tínhamos combinado por telefone que eu levaria um enorme chapéu-de-chuva encarnado e branco. Não gostei muito da ideia de levar um chapéu dessa cor para Alvalade, mas as coisas acabaram por correr menos mal. Eu nunca o tinha visto mais gordo, mas o Ludovico folheara o álbum de fotos lá de casa,por isso já fazia uma ideia de mim. Álbum de fotos lá de casa é uma maneira de falar, porque eu estou a viver numa pensão manhosa há uns cinco meses, o tempo que eu e a Manuela levamos de divórcio. Nunca chegou a haver separação. Entrou lá em casa com os papéis e disse:
— Assina aí. Ando com o Ludovico e já não gosto de ti. Vê lá agora se queres complicar as coisas.
Não quis. Sou um gajo simples.Estupidamente simples.Tão simples que até parece estúpido.Além de estúpido.Como é possível ficar na cavaqueira com o homem que nos roubou a esposa, no nosso primeiro encontro, no futebol ?
A questão é tanto mais surrealista quanto se sabe que aquilo nem era cavaqueira. Ele falava e eu ouvia. Eu e mais dez ou doze adeptos do Sporting, que comiam batatas fritas de pacote e bebiam cerveja. Confesso que o tema era aliciante para terceiros.
— Silva, é o que lhe digo. São azares, é o que é. Você tem ali uma mulherona! Desculpe lá... não foi por mal.Tinha ali uma mulherona... mas olhe que não fui eu que a pressionei para pedir o divórcio.Para lhe ser franco, já tínhamos um caso desde há dois anos, mas só agora, há uns meses, não mais que isso, é que a coisa se tornou verdadeiramente séria. Você não notou nada, ó Silva? A sério?!?
Não disse nada. Paguei as "bicas" e dirigimo-nos de regresso à bancada.O Ludovico continuava a falar. O jogo decorria, mas nós os dois estávamos noutro mundo. Ouvi, ouvi, ouvi.
Não sei como, ficámos amigos. Eu sou engenheiro electrónico, o Ludovico é vendedor de livros. Eu não gosto de futebol, o Ludovico é maluco por futebol e doente do Sporting.
— Mas não sou fanático, que isto de ser do Sporting não dá para ser fanático há dezasseis anos.
Eu tenho 1 metro e 60, o Ludovico é uma bestinha de 1 e 85, mal contados. Eu sou um bocado careca, o Ludovico tem uma trunfa loura de fazer inveja ao Robert Redford, nos seus bons tempos. Eu tenho 37 anos, o Ludovico faz 27 para o mês que vem. Resta dizer que a Manuela tem 35. O que será que ela viu nele ?
Para ser franco, eu também vi, quando fomos os dois aos urinóis, no fim do jogo. Mas os homens não se medem aos palmos. Há o amor, o carinho, a compreensão, o diálogo...
Basicamente, no meu caso há um grande par de cornos. Mas nem sequer quero mal ao Ludovico. Fiquei um bocado sentido com a Manuela. Sempre foram nove anos de vida em comum, a partilhar a cama.

******

— Ah! grande Silva! Desculpa lá ter entornado a cerveja. Então como vai isso?
Encolhi os ombros. As conversas com o Ludovico eram sempre um bocado para o retórico. Quem se dava muito bem com ele era o Armando, o dono do bar. O Ludovico até lhe fizera um preço especial na colecção "Vampiro", nos calhamaços da Agatha Christie.
Bah! Nem tudo era mau. O Ludovico pagava-me sempre o dinheiro que pedia emprestado. Aí com umas semanas de atraso, mas pagava. Claro que eu também lhe pagava umas canecas valentes e uns vodkas furtivos, nas noites do Bairro Alto, quando íamos laurear a pevide e ele tentava animar-me:
— Acorda, homem. Andas zonzo!
O barulho de fundo continuava a martelar-me os neurónios, agora misturado com a voz do Ludovico. Lá fora chovia a potes, o que não parecia incomodar o Ludovico.

O ranger da porta atraiu a atenção de quem estava sentado ao balcão. No caso, um bêbedo profissional que funcionava a J.B. com duas pedras de gelo (em balão) e um advogado especializado em divórcios, que já metera conversa comigo várias vezes e insistia sempre:
— Se nos tivéssemos conhecido antes, outro galo cantaria no seu divórcio.
O homem até podia ser bem intencionado, mas a cara dele não me agradava. As gravatas eram demasiado "in" e o sorriso cheirava a artificial e a oportunismo.
Seja como fôr, quando a menina da meteorologia entrou, toda a gente convergiu os holofotes sobre a figura e um estudante do 12º Ano disparou, como quem está de raivas contra o Marçal Grilo:
— Olha o que chove!
Ela ouviu e esboçou um ligeiro sorriso, quase imperceptível. Aposto que pensou para com os seus botões: "Sou muito puta, mas tenho de parecer fina por fora". Também pode ser que eu estivesse a pensar como um porco chauvinista. Carências, não invejas.
Continuei a fumar e a beber cerveja, tentando identificar o canal televisivo da menina do tempo. Em vão, o estilo é semelhante de canal para canal, algures entre a estrela porno em ascensão, a vedeta de Hollywood e a executiva de sucesso. A ideia confortou-me.
O fumo já não me martelava os neurónios. As rugas tornaram-se mais suaves. Sorri para o Ludovico. Clark Kent estava a travestir-se de Super-Homem. Virei-me no balcão. A menina pedira um "Irish Coffee" e cruzara as pernas de maneira a que se pudesse ver a "lingerie" negra deliciosamente provocante. Consultava a agenda com um ar atarefado, mas não disfarçava a sensação de quem sabia todos os olhares em cima de si pousados; tais como abutres convertidos à abstinência sexual por uma seita mista de elementos das Testemunhas de Jeová, Igreja Universal do Reino de Deus e Mórmones.
Ganhei coragem. Pedi ao Armando um "shot" de tequilla.
— Armando, um "shot".
O Ludovico olhou para o Armando. O Armando olhou para o Ludovico. Veio o "shot". Saí do balcão.Crescendo um pouco, cheguei com boa vontade ao metro e 70, comecei a puxar a cadeira de braços, fiz o sorriso à Bogart, com travo de Brad Pitt imediatamente pós-coito, e arrisquei:
— Posso?
Ela soprou o fumo por cima da minha cabeça. Sorriu. Fez sinal que me sentasse. Não sei como, acabei na casa dela, amarrado à cama por cintos de robe e "collants". O sexo foi bom para cima de óptimo, numa montanha russa de seios flutuantes em desalinhos de coxas de cetim. O ritmo freneticamente sincopado, em delícia rítmica de regata Oxford-Cambridge. Distraído com os seus lábios carnudos, com os meus ouvidos transformados em dolby-stereo dos seus gemidos, só me orgasmizei quando nada mais foi possível fazer pela Humanidade. O melhor de tudo foi a forma como ela suspirou e atirou o cabelo para trás. Claro que o sorriso compôs a situação, como numa tela de Rubens a invadir-me o cérebro.
No outro dia, cheguei ao bar do Armando ao fim da tarde e tinha parado de chover ao meio-dia. Ia ser promovido no trabalho e começava a perceber o chilrear dos passarinhos. Um raio de sol rasgava a neblina como um viking e dei o boa-tarde mais sonoro da minha vida.
O bêbedo do J.B. pediu um duplo sem gelo, o advogado engasgou-se e o Ludovico ficou a olhar para mim, com cara de Sporting campeão nacional, bestialmente aparvalhado. Pedi o telemóvel emprestado ao advogado, marquei o número da Manuela e aguardei. Finalmente, apareceu o atendedor de chamadas:
— Era só para te dizer que já estou a gozar a vida outra vez, minha vaca! Só para saberes!
Desliguei. Dei o telemóvel ao advogado, agradeci, pedi um "peppermint" Get 27, saquei de uma cigarrilha e olhei para o espelho. Clark Kent mirou-me com ar severo e deu para lhe ler os lábios:
— Estás a abusar.
Nessa altura veio-me uma cefaleia das antigas, senti o barulho de fundo a martelar-me os neurónios e aquela sensação de impotência a tomar conta de mim. Felizmente, nessa altura entrou a Patrícia (a menina da meteorologia) com uma mini-saia alegórica ao desejo e senti uma pequena erecção a manifestar-se discretamente. Dei uma palmada nas costas do Ludovico, entornei-lhe a cerveja, disse "até amanhã" e fomos para casa da Patrícia.
Tem 19 aninhos. Eu podia ser pai dela. Sabem duma coisa? Não me importo nada...

HAPPY ENDING
(até ver)







Auto-publicidade Poético-erótica

2 Comentários:

  • Às 7:59 da manhã , Blogger Geraldes Lino disse...

    Graça: acabo de assistir, em termos de leitura, a mais uma estupenda ejaculação literária.
    Post scriptum: quem fez aquele excelente "poster" lá no topo do "post", que está para o teu texto como a cereja está para o bolo?

     
  • Às 4:36 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

    Obrigado, Lino.
    E já lá vão dez anos. Depois disto a Ferrari começou a ganhar títulos atrás de títulos e o Sporting "papou" dois em três anos, à conta do Acosta e do Jardel.

    Quanto ao "poster" de cima (e ao de baixo) são da responsabilidade de elementos da minha equipa técnica. Muitas das vezes, executam ideias minhas de forma brilhante.

    Desta feita, as ideias nem foram minhas. Foram executadas por alta recreação. Já lhes disse: quando o trabalho fôr fabuloso, mantenho-me em silêncio. É o caso.

    E peço-te que te mantenhas também em silêncio e não "chutes" nomes da minha equipa técnica para a caixa de comentários, porque conheces perfeitamente as pessoas responsáveis por estes trabalhos.

    Infelizmente, o puritanismo da nossa sociedade pode penalizar profissionalmente algumas pessoas, apenas por se associarem ao Ganda Ordinarice, que está muito longe de ser um blogue pornográfico, mas é de longe, e pornograficamente, o blogue português onde há mais reportagem sobre pornografia e onde se "pensa" mais sobre pornografia: 90% das vezes com humor.

    Presunção e água benta cada um toma a que quer. Quem não quiser, toma uma cerveja com o Quim Barreiros.

    Deu-se também uma feliz concidência: a postagem deste conto na precisa altura em que o escritor Luís Carmelo me enviou um mail a pedir referências sobre a cerveja na literatura, quer sejam no campo do romance ou da poesia.

    Primeiro respondi que ia pensar; no dia seguinte lembrei-me das minhas criações: "Enquanto houver uma Carlsberg ao dobrar da esquina" (poema de "A Idade das Trovas", do meu pseudónimo Inocêncio Pinga-Amor) "Fogo fátuo, tição em brasa" (poema de "De boas erecções está o Inferno cheio") e este conto, onde se fala abundantemente de cerveja.

    Grande abraço para ti.

     

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial