Ganda Ordinarice

Desabafo bem intencionado e imagético sobre o Salão Erótico de Lisboa.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Contos avulsos - VI




UM RAMO DE FLORES

O sr. Bush Flowers era um cidadão proeminente de Moura. A dignidade do seu rosto desfigurado constituía prova evidente. O cadáver jazia de ventre protuberante a apontar o céu, como se quisesse elevar-se de forma mais ágil.
O dia não estava de facilidades para Ruy Ojuara, o detective privado que a recém-viúva Flowers contratara para desvendar o caso com prontidão e elegância investigativa. O calor não era pouco. Quarenta graus de tédio e mosquitos a zumbir à volta do sr. Bush Flowers, numa dança de sedução pornográfica.
— Não falta aqui sangue — disse Ruy Ojuara.
— Pois não — respondeu Diniz Pinto, o chefe da polícia de Moura.
A transpiração descia-lhes pela coluna. O sol batia na cara com uma violência injusta para quem não fosse alentejano, caso de Ruy Ojuara, que nunca pusera os pés em Moura e passava a maior parte do tempo enfiado no seu escritório de Lisboa. “Ruy Ojuara. Investigador. Facilidades de pagamento”.
— Há suspeitos, chefe?
— Você é que veio de Lisboa para investigar. O crime ainda está fresquinho e vem-me você com perguntas dessas. Calma. O Flowers já não vai a lado nenhum. Ó Viegas, então essa carrinha para levar o corpo, é para hoje?
A carrinha chegou hora e meia depois, aos solavancos, protestando nos amortecedores a sua condição de veículo com demasiado asfalto de qualidade duvidosa no currículo.
Viegas (o graduado mais importante de Moura, depois de Diniz Pinto) olhou de forma enjoada para Roussado, o sacristão de uma aldeiazinha adjacente, proprietário da carrinha e ligado a Diniz Pinto por vínculo familiar, através da irmã mais nova. A mulher do chefe, Patrícia “Alta Somítica”, na alcunha colada pelo povo, perdera-se de amores por Diniz Pinto na sequência de uma noite de tinto e comichões no púbis, à beira-rio. Coisas da juventude que acabam por se pagar no altar. Por vezes, o vagar para decidir as coisas é tanto que acaba por se fazer a primeira inspiração que nos vem à cabeça. E casaram-se. Para infelicidade de Diniz Pinto, que todos os sábados de manhã se queixava de mototonia conjugal.
— Quantos varões tem este jogo de matraquilhos, aqui do meu lado? — inquiria aos amigos.
— Tem quatro, homem dum cabrão!
— Pois olhem, já é mais do que as posições que a Patrícia usa quando está comigo.
Cinco da tarde. Bem aviadas. Viegas cumprimentou Roussado com os dedos peganhentos de uma sandes de presunto, para enganar a fome, enquanto as diligências decorriam no local da morte.
Jorge Simeão (“Fotografia de Qualidade.Casamentos e Baptizados”) aproveitava para estrear a sua nova máquina digital, sorrindo a cada ângulo novo. Quase contagiava o rigor mortis do Sr. Bush Flowers. Faltava-lhe um sapato, que um pássaro levara para cima de um chaparro sem que ninguém soubesse, logo após o crime, pelo fresco da madrugada, enquanto o sol não tinha autorização para rasgar o dia e abrir o expediente.

— Ó Simeão, vê lá se isso funciona. Não estou a ver essa máquina a disparar nada. Depois de levar o corpo já não há nada a fazer. Fica aqui uma poça de sangue para as formigas tomarem banho e mais nada. E de certeza que o presidente da Câmara me vai chatear à brava...
— Calma, chefe Pinto. Estas coisas japonesas nunca falham. A gente agora nem precisa de passar isto para o papel. Vai logo do meu computador para o computador da Polícia.
— Pois, mas deixa-te lá dessas modernices. Eu quero fotos de jeito. Amanhã ou coisa assim aparece uma foto a escorrer sangue na “Gazeta da Planície” e se calhar para a Polícia não há um grande plano como deve ser.
— Ó chefe, por amor de Deus! Sabe como eu sou. Primeiro a Polícia. A “Gazeta da Planície” nem me paga nada. É só porque a minha mulher deve favores ao chefe de Redacção. Eu vivo é dos casamentos e baptizados. Então, agora, em Agosto, com as férias dos emigrantes...
Duas horas depois, tudo estava consumado. Toda a gente fora de cena.
No dia seguinte o céu estava menos azul e a temperatura descera dois graus, por especial favor. A viúva Flowers, regressada de Nova Iorque no primeiro voo (Nova Iorque é um excelente pretexto para ser inocente de um crime ocorrido em Moura), almoçou com Ruy Ojuara no melhor restaurante da terra, o “Água na Boca”.
— Conte-me tudo, senhor Ojuara. Quero saber o nome do criminoso quanto antes. Não olho a despesas.
Quando os supremos de porco preto chegaram à mesa com óptimo aspecto e cheiro assaz convidativo, Ruy Ojuara fitou os olhos verdes da bem nutrida viúva quarentona que ia ficar ainda melhor na vida. O sr. Bush Flowers negociava em diamantes, possuía sete montes no Alentejo, um apartamento em Manhatan, uma casa recuperada em Lisboa (perto do Hotel da Lapa) e uma quintarola em Viana do Castelo.
Se isto, por si só, não bastasse para atrair Ágata Cristina (que chegara a vender amor nas estradas das cercanias de Amarante, entre os 13 e os 15 anos, de forma tão discreta que a situação nunca transpirou para além dos arrabaldes), o sr. Bush Flowers apresentava ainda algumas qualidades absolutamente excepcionais: 65 anos, um coração a tender para o fraco, hipertensão assídua e militante, uma propensão para tomar Viagra nas viagens de “negócios” ao Brasil, de Porto Seguro até Belo Horizonte, com passagens pelo Rio ou S. Paulo.
Ágata Cristina, quer dizer, a actual viúva Flowers, ex-Madame Flowers para as pessoas de Moura, casou de sorriso rasgado em Las Vegas e depois estabeleceu-se de armas e bagagens no coração do sr. Bush Flowers, decidido a esquecer as origens texanas (“Bela terra, Houston, bela terra”).
Foram cinco anos felizes para o sr. Bush Flowers, graças aos dólares (“Claro que o dinheiro traz felicidade”), ao Viagra e aos dotes sexuais da viúva Flowers, que não se poupava a esforços no sentido de conseguir ao marido, o mais rápido possível, um “voucher” para a Barca do Inferno. E o coração a resistir. Não só à fogosidade de Ágata Cristina mas também às sessões reforçadas com as meninas brasileiras. Pensava o velho Flowers que era tudo às escondidas da mulher. Nunca suspeitou de que ela o fazia seguir para todo o lado por John “Mad Dog” Roberts, ex-funcionário da CIA. E entre as múltiplas incumbências de “Mad Dog” constava no cardápio o encaminhamento de “garotas de programa” para os braços peludos e ainda rijos do velho Bush Flowers.



Quando a viúva Flowers regressou das compras em Manhatan e entrou no hotel, o recepcionista olhou-a visivelmente constrangido. Ágata Cristina abriu o envelope e subiu de imediato para o seu quarto. O raio do velho finalmente morrera. Mas ela não tinha tratado de nada. E havia muito sangue do lado de fora do corpo, já para não falar no rosto completamente esfacelado. O telegrama era taxativo. Crime, disse ele, o telegrama.
“Mad Dog” podia tratar do caso, mas era melhor não arriscar. A viúva Flowers tomou o primeiro avião e ainda no aeroporto de Lisboa pediu uma lista telefónica. Apostou no maior anúncio que encontrou nas Páginas Amarelas: “Ruy Ojuara. Investigador. Facilidades de pagamento. 24 horas ao seu serviço. Especialista em crime e adultério nas mais famosas capitais mundiais. Poliglota. Os mais recentes métodos de investigação, apoiados em tecnologia da mais alta ponta”.
E ali estava ela a comer uma salada mista, enquanto Ruy Ojuara, olhar maroto e vivo, estatura média, deglutia com visível prazer a dose generosa dos supremos de porco preto, regada a tinto da casa. E toda a gente dizia à viúva Flowers que era muito cedo para se saber alguma coisa.
Ruy Ojuara pediu-lhe uma semana. A viúva Flowers prometeu-lhe um bónus. Receava que as mafias de Leste a pudessem chantagear. Podiam muito bem ter despachado o pobre do Francis. Ou os chineses. Sim, podiam ter sido as tríades. E ela não ia abdicar dos montes sem mais nem menos. Ou o velho Flowers andava a traí-la com alguma moçoila de Moura? Será que “Mad Dog” fazia jogo duplo e escondia alguma coisa? Seria ela mesma um alvo a abater?
Ágata Cristina queria ver o caso resolvido. Não olhava a meios. Prometeu uma casa nova ao presidente da Câmara, o dr. Pedro Braganza Assis (emérito violinista e fanático de Chopin), “untou as mãos” do chefe Diniz Pinto e ainda lhe passou os lábios em zona carenciada (transportando-o ao planetário do céu alentejano), comprometeu-se com uma nova carrinha para o sub-chefe Viegas.

O homem que tinha a chave da questão voara de Lisboa para o Texas logo a seguir à morte acidental de Francis Bush Flowers. Chamava-se Hercule Marple e tinha andado na escola, em Houston, com o velho Flowers. Chegara sem avisar a Moura, ao monte, com um presente-surpresa. Uma pantera negra, de nome Filomena.
O velho Flowers ficara radiante com o presente e saiu para os campos no Suzuki Samurai 4x4, de cor branca. Não quis que ninguém fosse com ele. Ou melhor, ele a guiar, Hercule ao lado e a Filomena presa pela trela, na caixa aberta da “pick up”. Tirou duas pequenas garrafas de Jameson do “tablier” e as memórias desfiaram-se ao longo de duas horas.
Filomena tinha calor, tinha sede e estava a ficar aborrecida da trela apertada. Certo que era uma pantera negra amestrada, mas do zoo de Houston para os montes de Moura ainda vai uma diferença, com viagens de avião e camioneta pelo meio. E depois, só por brincadeira (e muita bebedeira), Hercule dera-lhe cocaína a cheirar.
O velho Flowers rematou a faena puxando o rabo a Filomena, mal saiu do Suzuki Samurai, aos ésses e na galhofa com o seu velho amigo Hercule. Filomena levou a mal e solucionou a questão em 15 segundos afiados e supinamente rosnados.
Hercule meteu-se no carro, deixou-o na garagem do velho Flowers, chamou um táxi para o centro de Moura, meteu-se na camioneta para Lisboa e tomou o primeiro avião para Houston. O melhor era não dizer nada a ninguém. Mandou um ramo de flores.




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